Domínio Colateral – Parte 3

Poucos minutos depois de acordar sinto como se não estivesse vivo. É sempre assim. Acordo e olho ao meu redor, desconhecendo o quarto e os objetos que o enfeitam. A claridade sempre me perturbou, mas é ela que me faz acordar no horário correto para trabalhar. Pontualmente às dez da manhã o sol se posiciona em um ponto que mira a minha cabeça. Passados os minutos de adaptação à realidade vou direto para o chuveiro. Não é bem uma fixação excessiva em ficar limpo. O problema é que toda manhã acordo ensopado de suor, já que mal uso o ar condicionado. Assim que saio da ducha quente estaciono de frente para o espelho e observo minha aparência, dessa vez diferente de todos os outros dias anteriores, mais pálida, cansada, abatida. A preocupação da noite anterior estava estampada no meu rosto. Não sei que horas peguei no sono, mas pelas olheiras foi bem tarde. Ignorei a noite anterior e segui para o trabalho após me arrumar.

É incrível como o mundo é diferente do eu enxergava há alguns dias. Depois da minha “mudança” as coisas ficaram mais visíveis, e uma gama de oportunidades surgiu do nada. A natureza, as pessoas, as construções, tudo passou a ter uma nova imagem. Foi como nascer em outro planeta, ou simplesmente me mudar de um país para o outro. As cores são mais intensas, os cheiros são mais suaves e a forma das pessoas caminharem é única. São milhões de novos fatores que até então passavam despercebidos. A energia tem um fluxo único e a natureza é perfeita. Tudo passa a se encaixar e os assuntos que antes importavam agora não fazem a menor diferença. Não importa se houve uma queda na bolsa, ou se uma empresa foi privatizada. Isso não importa mais para mim. Essa busca excessiva por poder capital não enche mais meus olhos. Agora um novo tipo de poder interessa, o poder real, que define vida e morte. Dinheiro nunca foi poder e eu só consigo visualizar isso agora. O poder está na mão dos mais fortes, e agora falo em força física, em predador e caça. Isso é o que realmente importa, isso é o que nos rodeia. O mundo é uma selva onde os grandes esmagam os pequenos, mas na natureza há uma conotação totalmente diferente do mesmo assunto, e nós fazemos parte dela, somos parte da natureza inevitavelmente, e o que nos difere dos animais é esse pensamento capitalista de poder acima de tudo, um poder idealizado, simbolizado por pedaços de papel desenhados. É isso que falta no mundo, uma visão realista das coisas. Até poucas horas eu era apenas parte da massa, e agora sei como tudo funciona e darei valor a isso, e de alguma forma esse meu poder real terá que abrir os olhos do mundo. Esse é provavelmente o meu propósito.

— Bom dia Sr. Arthur — disse a secretária da TT – Gestão de Recursos, empresa que trabalho há quase três anos. Ela me fitou mais que o normal e hesitou um pouco ao dizer: — O senhor está se sentindo bem?

Pude ouvi-la engolir saliva pouco antes e logo depois de fazer a pergunta. O seu coração bateu aceleradamente, e o sangue limpo pelas horas de sono correu mais rápido. É fácil perceber que os funcionários da empresa tem medo de serem demitidos, por isso medem as palavras com qualquer um dos “chefes” ou com o próprio dono. Eu era um dos chefes.

— Estou perfeitamente bem, obrigado — respondi educadamente para não assustá-la ainda mais, e consequentemente criar uma atmosfera favorável a mais um ataque, já que minha fome crescia aos poucos e ela era a vítima perfeita, cheia de medo ao redor de si.

Todas as manhãs começam com uma reunião para se discutir gastos e crescimento de determinadas empresas, assim como uma revisão do dia de trabalho anterior. Normalmente as reuniões não passam de trinta minutos, e acabam com xícaras de café expresso, que estava com um cheiro mais forte que o normal, quase me dando alergia. Recusei-o pela primeira vez depois de anos. Após sorrir para os meus companheiros e apertar algumas mãos, fui para a minha sala, assim como todos os outros. Cada um cuidava de uma empresa diferente, mas nas reuniões tudo era discutido em conjunto.

A janela da minha sala era do tamanho da mesma, tomando todo o pé-direito. Todo o prédio era assim, e cheio de escritórios como o que eu trabalhava, por isso era normal pelo menos um suicídio por ano. Nesse ramo ou se ganha muito dinheiro, ou se perde muito dinheiro, é uma aposta alta. Fora isso, a vista é magnífica, de frente para a praia, onde observo o pôr do sol diariamente. Mas hoje seria diferente. Todos aqueles números me enojavam e a minha fome só aumentava. Até tentei ficar até o final do meu turno, mas não consegui. Três horas após a pausa para almoço arrumei minhas coisas e voltei para o carro.

Não consegui sair do lugar por alguns minutos. Algo dentro de mim queria sair por aí e matar essa sede mortal. Apenas uma vítima por dia não estava sendo suficiente para saciar essa estranha fome. Em contrapartida tinha algo que ainda estava no ritmo do dia anterior, que considerava errado matar, mesmo que para evitar um colapso de abstinência. Mas é algo incompreensível para mim. Pensei que o desejo só faria com que tudo se tornasse mais simples e facilmente adaptável, o que não está acontecendo. Parece que esse “senso de bondade” quer me impedir de ser quem eu sou, ou melhor, de ser quem eu me tornei. Não, eu sou o que eu me tornei. Arthur Marau não existe mais, quem existe agora é o Predador, o dominador, a essência do novo mundo. Eu sei que com esses novos poderes eu posso criar ordem a partir do caos que é esse mundo. É um pensamento até infantil esse de mudar o mundo, de ser radical e achar que a sujeira pode ser limpa da face da Terra. Mas a chave está aí, no pensamento infantil. A mente de uma criança é limpa e vai se poluindo com a corrupção de acordo com o tempo que passa, e mais ainda com as informações que recebe de tudo ao seu redor. Televisão, jornais e pessoas, acabam afetando o desenvolvimento e moldando uma mente inicialmente sem ideologias. O meio acaba dando um rumo para cada um até que novos robôs se formam. Esse é o mundo que eu tenho que mudar, e para isso não pode existir nenhum tipo de arrependimento. A minha ideologia é a correta e não há ninguém que possa mudá-la. Moldá-la para maiores propósitos, quem sabe, mas não alterá-la de rumo.

O cheiro de sangue veio como um soco direto no meu peito. Procurei a fonte por segundos que pareceram anos. O que a entregou foi o medo, o coração batendo forte e o corte do dedo expulsando mais sangue do que deveria. Era a secretária do meu escritório, estranhamente caminhando entre os carros do estacionamento. Não quis saber o que ela, que não tem carro algum, queria lá embaixo. A única coisa que quis saber era qual o gosto teria aquele sangue jovem.

Ela não correu ao me ver se aproximando. Não haveria motivo para correr, afinal eu era um conhecido de anos a quem ela tanto temia, mas não a ponto de fugir ou se esconder. Acredito que ela quis me cumprimentar, mas sua voz foi abafada pela minha mão cobrindo a sua boca, evitando mais uma “boa tarde senhor Arthur”. Foi um movimento rápido como na noite anterior. Ela tentou se debater, mas não conseguiu sair do lugar. As forças da presa são sempre inúteis perto das do seu predador. Uma mordida lenta e o sangue começou a escorrer da sua carótida; o banquete havia começado. Logo no inicio a fome se multiplica assustadoramente e parece que nenhuma quantidade de sangue jamais me fará satisfeito, mas à medida que meu corpo sente a presença de sangue novo, a vontade se reduz aos poucos, até um ponto que não é mais necessário se alimentar. Só que mesmo satisfeito eu sempre quero mais, e continuo até não aguentar uma gota extra. Nesse ponto a vítima já tem a pressão arterial reduzida e não tem mais força alguma para reagir. A única coisa que pode fazer é desabar no chão e aproveitar seus últimos minutos ou segundos de vida. Essa era a melhor parte. A vítima caída diante dos meus pés, submissa ao meu poder.

— Por quê? — ela me perguntou com uma voz fraca. Meu coração batia assustadoramente forte e minha respiração era ofegante. Não consegui responder. — Que Deus te perdoe por isso — dessa vez foi num sussurro quase mudo, e morreu de olhos abertos.

Observei por alguns instantes o corpo da secretária enquanto as suas palavras ecoavam pela minha mente. De alguma forma aquelas palavras me fizeram lembrar aquele outro lado, que me dizia o que era certo e errado, e que isso era errado. Em dois dias matei duas mulheres que estavam fora dos meus objetivos, puramente por fome, sede e por prazer. Todos os pensamentos que invadiram minha mente na noite anterior, e mais cedo pela manhã pareceram vir de encontro com os meus atos. Eu estava sendo completamente hipócrita desde o momento que ganhei esse “poder”. Ao ter a oportunidade de controlar vida e morte de qualquer um ao meu redor, tentei pensar nisso como um dom de mudar o mundo e extirpar a hipocrisia. Mas com o passar dessas horas, acabei agindo exatamente contra tudo que preguei sendo o certo. Fui hipócrita ao ter uma ideologia, mas não segui-la. Matei duas pessoas totalmente fora do padrão que eu mesmo criei. Será esse o meu fardo? Esse “poder” que mais parecia uma dádiva, aparece agora como uma maldição. Mas eu posso mudar isso, eu tenho o controle dele. Eu sou o dono do meu mundo.

Subi a passos largos de volta para o meu escritório e fui direto ao banheiro, limpar as marcas de uma batalha sem vencedores. A partir de agora tudo poderia ser mudado. A única dificuldade seria controlar essa minha sede sanguinária. Mãos e rosto limpos, sem rastros de sangue. Fui para a minha sala e lá fiquei sentado na cadeira enquanto observava o sol se pôr.

Quase uma hora depois, com o horizonte totalmente escuro, a porta se abriu e o meu chefe entrou, o dono da empresa.

— Arthur, terminou as planilhas? — ele me perguntou com sua voz calma e pacífica de sempre. Um bom chefe. A única coisa nele que agora me irritava era ouvir o seu sangue lento assim como sua voz, diferentemente das duas jovens que assassinei nas ultimas horas.

— Quase no fim, senhor.

Ele sorriu e deu as costas para ir embora. Alguma coisa fez com que seu coração batesse mais forte. Talvez ele estivesse preocupado que eu não entregasse a planilha a tempo, para ser apresentada na reunião do dia seguinte. Ele estava certo. Eu não terminaria a planilha. Abriu a porta praticamente em câmera lenta, e aquela foi a maior tortura que ele podia ter feito. O coração acelerado, o sangue correndo rápido pelas veias e a minha fome crescia. Na verdade a fome não era o que me motivava naquele momento, mas sim minha vontade de matar, o prazer que isso me daria. E a cada milésimo de segundo que ele continuava perto de mim, o meu único pensamento era fazer minha terceira vítima. Se eu o matasse agora seria o meu fim. Um prédio como este é cheio de seguranças, e logo a polícia estaria aqui. Creio que não sou à prova de balas, e o melhor é não arriscar.

— Boa noite, Arthur — disse num sussurro, então fechou a porta atrás de si.

Levantei-me um pouco, de frente para a enorme janela de vidro e olhei as luzes dos prédios que ficavam ao redor. Era uma bela cidade à noite. Agora o que tenho é uma certeza, e não apenas uma possibilidade. O poder surge como salvação, mas aquele que o detém é o mesmo que sofre das suas consequências. A única verdadeira salvação para mim era o chão, vinte e sete andares distante.

(Texto Via Tumblr Diogo Santana)

Domínio Colateral – Parte 2

A sujeira parecia maior que qualquer outra jamais experimentada por mim. Sangue nas mãos, no rosto e no peito. A minha vontade era de entrar em uma máquina de lavar e passar horas girando lá dentro, esperando que todo aquele sabão em pó fosse fazer o efeito que é mostrado nos comerciais. Talvez nem um milhão de banhos fosse capaz de me limpar. Eu precisava de uma limpeza na alma, uma lavagem por fora e por dentro. A morte apareceu como um desejo e acabou se tornando um efeito colateral, ou mais de um, uma coletânea de efeitos colaterais. Começou com essa sensação de sujeira que nem dois banhos foram capazes de remover. Minha pele parecia reluzir depois de tanto sabão, e mesmo que o vermelho já tenha saído por completo, a sensação persistia. Um chá de camomila e um suco de maracujá foram a solução inicial, que falhou. Então um calmante me fez sentir melhor.

O segundo efeito foi a febre, mas uma febre leve. Apenas a sensação de frio e o suor excessivo, que ficou até que eu pegasse no sono, o que não foi um caminho curto. Passei horas rolando na cama até abrir os olhos e ver que era dia. Nesse tempo mil coisas passaram na minha cabeça, coisas que eu jamais imaginei que pensaria. Se bem que numa situação como a minha é bem comum pensar em fatores como certo e errado. Isso deve passar na cabeça de um policial ao matar o primeiro criminoso numa perseguição, ou na de um assaltante ao cometer um homicídio culposo, apenas pelos planos não terem dado certo. São fatos inesperados onde a reação é instintiva, assim como foi comigo. Primeiro vem a ação: uma garota perdida e com medo, procurando informações; depois o ato inesperado: um desejo enorme de sangue, súbito e inicialmente insaciável; e por último a reação: um ataque fatal, sem chances de defesa pela vítima, instintivo e selvagem.

Dessa forma já consigo ter uma Idea da causa do assassinato. Agora falta saber as consequências e implicações de tal ato, por isso nada pode ser mal calculado, tudo tem que ser perfeito. A única brecha era um homem de aparentemente quarenta ou cinquenta anos que é testemunha do crime, mas que à essa hora nem deve se lembra mais do que viu. Então aquilo que não foi planejado acabou sendo praticamente perfeito. Uma única testemunha que não seria levada em conta e nenhuma evidência de quem matou a garota. Mas isso é o que menos importa no momento.

A febre que estava tomando conta de mim era um sintoma claro de culpa e de dúvida. A sociedade tanto criticada por mim agora poderia estar superior? Ou é apenas um louco devaneio de febre? Eu tenho esse direito de matar se for para suprir as minhas necessidades? Creio que sim. Uma necessidade é algo incontrolável, mesmo que seja de um bem material que só proporcione status para o seu detentor, o que nesse caso é uma necessidade fútil, mas que no meu é uma linha que separa a vida e a morte. Uma fome insaciável de sangue e morte maior que o prazer proporcionado pela luxúria.

Essa abstinência de algo que nunca tive pode significar uma evolução, quem sabe a criação de algo novo, uma raça nova, o que eu chamo de criatura até agora. Esse novo ser que tomou conta de Arthur Marau pode significar que as leis vigentes não se aplicam a mim. Uma criatura não, um predador seria a palavra correta. Muitos predadores foram extintos, dando lugar a novos predadores. E agora a raça humana cederá lugar para mim, o novo dominador desse mundo. Um ser com todas as habilidades de um ser humano comum, porém elevadas. Força, audição, percepção, velocidade, destreza e frieza fazem de mim algo próximo da perfeição. O fato de matar sem nem pensar nas consequências e criar uma atmosfera sem falhas já é um atestado da perfeição que está crescendo em mim. A frieza de inicialmente inexistente começa a aparecer, dando espaço à certeza de que a próxima morte será ainda melhor, e isso caminhará até que a perfeição seja alcançada.

Não sei o que me fez assim. Sei apenas os motivos que me levam a continuar sendo o que sou. Talvez a visão de um mundo que precisava ser mudado, limpo e refeito, criou em mim esse desejo insano de sangue. Com o passar do tempo as mortes vão ser mais limpas, mais fáceis e mais prazerosas, eu sinto isso. Não demorará muito até que minha consciência esteja completamente limpa e não haja mais corrupção, imoralidade, preconceitos e hipocrisia.

O quarto escuro desapareceu e um novo quarto surgiu, era dia. Foi-se uma noite sem sonhos e horas se passaram até o relógio marcar dez horas da manhã.

(Texto Via Tumblr Diogo Santana)

Domínio Colateral – Parte 1

O sangue escorrendo pelos dedos e pingando ao redor da Quinta Avenida foi o ponto de separação das duas vidas. Anteriormente Arthur Marau, agora não sei mais o que. Aquela visão só podia ser narrada como um terrível homicídio à luz da lua numa rua normalmente movimentada, mas que naquele horário era o local perfeito para um crime de qualquer tipo.

Não sei o que me levou a matar. Talvez aquela sede de sangue súbita tenha sido causada pelo excesso de filmes de vampiro em estreias semanais nos cinemas. Românticos, sanguinários, altamente fantasiosos, como uma enxurrada, fazendo uma lavagem cerebral nos seres humanos. Mas era algo mais, como um desejo que cresceu dentro de mim de uma hora para outra, criando asas e me guiando por um mundo totalmente novo, com novas descobertas. Um aprendizado fantástico, desconsiderando-se o aspecto moral. Se bem que não há moral nenhuma em comparações. Ninguém é perfeito e todos cometem seus erros. Não há julgamento, apenas desrespeito claro e preconceituoso. Essa é a moral de hoje em dia: um conjunto de fatores vistos separadamente, excluindo-se o que se passa ao redor. Porém todos esquecem o que existe fora do seu campo de visão humano. Hipócritas imundos. Talvez seja este o real motivo que me levou a matar: ódio a uma sociedade que prega igualdade enquanto atiça a imoralidade. Que moral há em alguém que vê um mendigo na rua e nada faz para mudar o mundo em que vive? Pessoas assim não tem direito algum para julgar outros crimes. Não há o crime mais leve ou o mais pesado, apenas o crime. Meu crime foi matar uma jovem, mas até que ponto eu estou errado?

Uma porta de bar abriu ao longe. Pude ver uma figura grande, andando com o apoio da parede mais próxima. Parou alguns segundos e depois continuou o percurso que parecia mais um caminhar até a forca. A soma de todos esses detalhes deixava identificado o ser distante. Era um homem de cerca de cinquenta anos, tomado pelo vício do álcool, a caminho da sua aconchegante sala de estar. Mas o que podia ser uma caminhada de dez minutos levaria quatro vezes mais tempo para ser feita, naquele ritmo lento e cansado. Posso arriscar até que dentro de um mês ele sofrerá de derrame ou parada cardíaca, só de ouvir o ritmo dos seus batimentos cardíacos. Veias entupidas, cheias de gordura… Até hesito em fazer a minha segunda vítima. Espero que o desejo de matar seja menor do que a razão. Mas levando em conta a garota pálida no chão, creio que o alcoólatra não viverá a tempo de ter seu primeiro derrame.

Os batimentos ficavam cada vez mais altos e a respiração mais ofegante. Ele ainda não estava perto, mas eu conseguia ouvir nitidamente o sangue percorrendo as veias e artérias da figura longínqua. Creio que ele ainda não percebeu a criatura à frente de si, ou a garota estirada em plena calçada. Sua visão turva pela bebida e limitada pela idade não o permitia saber que cada passo à frente, era um mais próximo da própria cova. Mas por sorte a minha sede escorreu como o sangue da garota e coagulou em algum ponto do meu corpo. O nojo daquele sangue impuro me fez perder o apetite, então era hora de ir. Tive a sensação que o homem petrificou por alguns instantes antes que eu me retirasse da Quinta Avenida. Devia estar em choque, ou nunca havia presenciado um assassinato, ou simplesmente tinha parado pra vomitar o que seu fígado não conseguiu filtrar. E assim, seguiu rumo ao seu derrame.

(Texto Via Tumblr Diogo Santana)

Carona Perigosa

John tirou férias do trabalho, e antes de pegar a estrada e encarar uma longa viagem para visitar seus pais, parou em uma lanchonete para usar o banheiro e comprar comida. John também queria comer algo no local, mas ao entrar no estabelecimento, todas as mesas estavam ocupadas, então ele sentou em um dos bancos junto ao balcão. Enquanto devorava um enorme hambúrguer, John não deixou de reparar nas pessoas que ali estavam. As mesas estavam ocupadas por famílias, jovens, idosos e, em outra mais afastada, havia um rapaz meio cabisbaixo, tomando sopa.

Terminado a refeição, John pediu algo para a viagem, e enquanto aguardava, ele foi ao banheiro. Ao voltar o lanche já estava pronto, John agradeceu a atendente, pegou o pacote e saiu. Enquanto se preparava para entrar no carro, John ouviu alguém chamar sua atenção. Era o rapaz que tomava sopa. Ele estava mostrando a carteira que John havia esquecido no balcão. John agradeceu muito ao rapaz, e disse que não teria como compensá-lo. O jovem falou que se John desse uma carona, já estariam quites. O rapaz que se chamava Sam carregava uma enorme mochila e disse que iria até uma vila, situada perto de uma estrada de terra que corta algumas plantações. John falou que levaria Sam até essa estrada e depois seguiria sua viagem. John notou que o rapaz não era de falar muito, e assim foi durante todo o percurso.

Ao chegar na estrada de terra, ela estava completamente irregular, e ao passar em uma enorme valeta, o pneu do carro furou. Empurraram o automóvel para o acostamento, John pegou o estepe, a chave de roda, mas não achou o macaco. Procurou, procurou, mas não encontrou. De fato, havia esquecido. John telefonou para um mecânico, e o rapaz que atendeu, disse que demoraria um pouco até chegar no local. Sam queria ir andando até a vila, mas John disse que logo chegaria ajuda e assim poderia levá-lo ao seu destino. Mas passaram algumas horas e nada do mecânico aparecer. John começou a reparar na inquietação de Sam e perguntou se havia algum problema. Sam disse que estava anoitecendo e ele não gostava muito do escuro. Mais uma hora se passou e nem sinal do mecânico, e Sam percebendo que a noite chegava, pegou sua mochila e disse que seguiria a pé. John perguntou por que ele não queria esperar, mas Sam falou apenas uma frase: “Vai ser melhor pra você”. John, que não entendeu o que Sam quis dizer, apenas ficou observando ele ir embora pela estrada.

A noite chegou e nada do mecânico aparecer. John, sentado sobre o capô do carro, sozinho em uma estrada de terra cercada por plantações de milho, nada podia fazer a não ser esperar. À medida que entardecia, ia ficando cada vez mais frio e uma densa neblina começava a se formar. Já ficando cansado, John entrou no carro, ligou o rádio, encostou a cabeça no banco e passou a cochilar.

Sem saber quanto tempo passou, John foi acordado por um barulho estranho vindo do meio da plantação. John olhou para todos os lados, mas não viu nada. Alguns segundos depois, John tornou a ouvir o mesmo som. Era como se um animal do porte de um tigre andasse pelo milharal. John desligou o rádio, fechou as janelas, e em silêncio, ficou apenas ouvindo os sons dos galhos serem quebrados e a respiração do animal que parecia ser enorme. De repente, John vê um vulto atravessar a estrada bem em frente ao seu carro. Não dava para enxergá-lo direito, mas parecia ser um cachorro muito grande que, por um instante, andou sobre duas patas.

Alguns minutos depois, quando aquele animal parecia ter ido embora, John vê as luzes de um carro vindo pela estrada, e por um instante sentiu-se aliviado. O veículo parou alguns metros atrás do carro de John, logo desceu um homem com uma lanterna e começou a caminhar em direção ao carro de John, mas alguma coisa chamou a atenção do homem. Ele clareou o milharal com a lanterna, mas, mal ele fez isso, e um assombroso cão saiu da plantação e pulou em cima dele. O animal começou a devorar o homem, e John apavorado, se encolheu todo no banco de trás do carro e ficou ouvindo o som da criatura destroçar o pobre coitado. Depois de alguns minutos o animal parecia ter terminado sua refeição, pois John ouviu o barulho do bicho adentrando o milharal. Ele percebeu que o animal estava indo embora pelos seus uivos pavorosos, pois iam ficando cada vez mais distantes. John passou o resto da noite encolhido no banco de trás do veículo.

Só pela manhã, John saiu do carro e encontrou o cadáver desmembrado do homem. Era o mecânico que ele havia chamado. John telefonou para a policia, que logo chegaram e encontraram a terrível cena. Os policiais estranharam a história, mas acharam impossível que John tivesse feito aquilo. John também contou sobre Sam, e só depois de procurar muito, encontraram uma barraca bem no meio da plantação. John reconheceu a mochila e também as roupas rasgadas que encontraram a poucos metros da barraca, eram todas de Sam. Os policias ajudaram John com a troca de pneu e disseram que continuariam procurando por Sam. John pode visitar seus pais com uma terrível história para contar.

Prince

(Edson Rocha)

A CARTA

Eram oito horas da manhã quando Thiago recebeu aquele envelope por debaixo da porta do seu quarto. Gritou:

-Mãe, Foi Você que colocou essa carta aqui?

– Não, querido, Por quê?

Com um certo ar de curiosidade, sentou na sua cama e começou a ler com atenção:

“Querido Thiago…

Como expressar em palavras a emoção que senti quando te olhei a primeira vez. Acho que foi amor à primeira vista. Você lembra quando nós trocamos à primeira palavra, o primeiro beijo, nosso primeiro aniversário de namoro. O amor que me consumiu por completo, que cegou que levou ao céu e ao inferno. Infelizmente com o tempo você foi se tornando agressivo, gritava comigo por qualquer coisa, não me levava mais para passear nos parques.

Lembro-me com tristeza da primeira vez que fizemos amor, pra mim era um momento tão mágico, carinhoso, mas para você foi como se estivesse descontando a raiva em alguém. Não foi como eu tinha imaginado, mas, mesmo você me maltratando do jeito que fez eu não consegui tirar esse amor que sempre esteve dentro de mim. Uma lágrima escorre em meu rosto agora. Essa lágrima me fez lembrar-se do dia em que você me matou. Pediu para que fôssemos até aquele cemitério, que eu morria de medo de ir, mas você insistiu. Cheguei lá antes do horário marcado e disse ao zelador que precisa visitar um ente querido, ele deixou, mas fez um sermão daqueles. Fiquei naquele cruzeiro te esperando por muito tempo até que você chegou, abri um sorriso de felicidade, mas você pegou no meu braço com violência e me arrastou para aquele túmulo, lembra? Você me deu um tapa no rosto e arrancou a minha roupa, me violentou. Lembro-me que você mordeu um dos meus mamilos com tanta força que quase arrancou de meu corpo. As marcas das mordidas que você me deu por todo corpo ficaram por muito tempo. Você puxava meu cabelo até que saíssem punhados na sua mão. Quando você terminou de me violentar em cima daquele túmulo, acendeu um cigarro e como eu não tinha forças pra levantar você foi me queimando nas solas dos pés. Eu chorava muito, mas não tinha forças para reagir. Depois disso você tirou um canivete do seu bolso e perfurou o meu corpo até me deixar sem vida. Minha alma não sentia mais dor, já estava fora do meu corpo no segundo golpe que você me deu no peito. Vi quando você enfiou o canivete na minha garganta e foi rasgando a minha pele.

Como eu fiquei triste em me ver daquele jeito, eu gritava, chorava, pedia para você parar, mas você não me escutava, eu clamava para me deixar viver, mas como? Eu já estava morta. E assim você saiu e me deixou ali até que o zelador me achasse e tomasse as devidas providências. Caminhando pelo cemitério, encontrei um homem com uma grande capa preta e chapéu vermelho de abas largas que dizia ser o diabo e que se eu quisesse ele poderia dar o troco por mim, mas exigiria algo em troca. Eu estava com muito ódio pelo que você tinha feito então dei a minha alma a ele. Ele disse pra eu aguardar que você ia ter o que merecia…

Então, hoje dei um jeito de te avisar de que muito em breve estaremos juntos novamente. Tenho certeza de que você me pedirá perdão, e eu já te perdoei amor. Thiago, eu te amo nunca se esqueça disso, e espero que você me perdoe também, pois só fiz o que meu coração mandou e afinal você merece.

Até breve, Camila.”

– Quem pode ter feito uma brincadeira imbecil dessas? Será que o foi o zelador? – pensou ele furioso afinal ninguém sabia daquilo, era um segredo só seu. De repente ele escutou um barulho de vidro sendo quebrado e a sua mãe reclamando.

– Que foi mãe?

– Eu derrubei aquele vaso de vidro indiano que seu avo me deu, droga, tem cacos pra todos os lados. Só sobrou a base. Acho que dá pra colar.

Thiago jogou a carta em cima da cama e abriu a porta do quarto, caminhou por cima do tapete olhando para o andar de baixo onde sua mãe recolhia os cacos do vaso. Sentiu que ao chegar na ponta da escada o tapete se ergueu. Ele olhou pra trás e pode ver o próprio Capeta segurando na ponta do tapete, dando uma piscadinha e puxando o tapete fazendo Thiago cair e rolar escada abaixo. Thiago rolou escada abaixo e quando chegou ao ultimo degrau caiu em cima da base do vaso de vidro indiano que estava cheio de pontas fazendo ficar cravado em seu peito.

Nada mais se escutava, somente gritos e lamentos de uma mãe que suplicava para seu filho voltar não sabendo o passado horrível que ele tinha deixado pra trás.

Lucas Alves (Luke)